A portuguesa Fatoumata Diallo encontrou no atletismo um escape para a infância e vida difíceis e vai estrear-se em Mundiais nos 400 metros barreiras e na estafeta mista 4x400, procurando o “sonho” de chegar a Paris2024, ‘em casa’.
A viver na capital francesa desde 2019, Diallo é, aos 23 anos, a segunda melhor portuguesa de sempre na sua distância predileta, depois de correr em 55,57 segundos nos Campeonatos da Europa de seleções deste ano, integrados nos Jogos Europeus, e parte dos recordistas nacionais na estafeta.
Acima, nos 400 metros barreiras só os 55,22 de Vera Barbosa, em 2012, e em Budapeste quer aproximar-se dos Jogos Olímpicos [a marca de qualificação está nos 54,85], um “sonho”, admite em entrevista à Lusa, depois das tribulações da vida.
Chegou ao atletismo por via do desporto escolar e do corta-mato, quando estudava na Escola Dr. Alberto Iria, em Olhão, em finais de 2012.
“Foi aí que conheci o Paulo Murta, que me perguntou se queria fazer atletismo. Eu disse que sim, sempre quis fazer atletismo, já em África, em que corria muito, até porque a escola era longe”, conta.
Passou a correr de Olhão até Pechão, terra do clube que ainda hoje representa, para poder ir aos treinos, nos quais a pista foi entrando, mesmo sem o favor dos pais, e o olhar de Paulo Murta, treinador de atletismo, fez a diferença.
Pôs o talento ao serviço do trabalho - porque “há sempre miúdos com talento, mas isso por si só não leva a lado nenhum” - e foi-se destacando. Como iniciada já participava nos Nacionais de juvenis, e com boas marcas.
“Quando és nova, dizem-te que nunca vais chegar longe. Mas eu adoro trabalhar. Vim de África, não tive uma infância como toda a gente, em África já era adulta”, revela.
A infância, afirma, não foi fácil e inclui vários episódios de maus tratos e abusos. “Transformei toda esta raiva no atletismo, sempre a trabalhar, trabalhar, e a não ligar ao que os outros dizem”, atira.
Nascida na Guiné-Conacri, a jovem cedo se viu sem os pais, que vieram para Portugal quando tinha cinco anos e uma irmã bebé, além dos irmãos mais velhos, e traz ainda “cicatrizes no corpo” do que sofreu naquele tempo, até se mudar para Olhão em 2012, conseguindo “os papéis portugueses e fazer a escola”.
O atletismo em Portugal salvou-lhe a vida e, agora, tem devolvido, sob a orientação de Paulo Murta, que “ajudou muito” dentro e fora do desporto, fazendo-a também “descobrir muitas coisas na vida”.
“O Murta, lembro-me, quando ia a um campeonato da Europa, ou ao Mundial, com a Ana Cabecinha, comprava-me umas sapatilhas. Nunca me tinham dado umas prendas assim”, recorda.
Depois de a avó ter sofrido um AVC quando visitou os netos no Algarve, no final de 2018, começou “a ter lesões e problemas” ao fazer ‘piscinas’ entre a escola, os treinos e o hospital, e decidiu, novamente, seguir os pais para Paris.
Foi aí que encontrou outro treinador, Joel Batori, que a tem ajudado “muito”, conseguindo “boas marcas e podendo sonhar mais alto”, e procura ainda este ano conseguir sair de casa dos pais e passar a viver mais perto de onde treina.
“Posso mesmo sonhar ir longe, a cada esforço que faço sei que posso ir muito mais longe. Depois desta última época, se continuar nesse ritmo e trabalhar no duro, posso mesmo sonhar ir aos Jogos”, diz.
Por falar em Jogos, “era mesmo engraçado” chegar a esse sonho logo na cidade a que chama casa, tendo visto em primeira mão “os problemas nos comboios, todas as obras”, além de um local de treinos por onde passará uma seleção durante o estágio para Paris2024.
Esperança olímpica há muito, foi integrada no projeto agora também por via da estafeta mista 4x400 metros, depois de nos Jogos Europeus Cracóvia2023 bater o recorde nacional com João Coelho, Cátia Azevedo e Ricardo dos Santos – 3.14,06 minutos, levando a que em Budapeste2023 também esteja escalada nesta disciplina.
“O João, o Ricardo, a Cátia... eu tinha medo de falhar, por não ter aquela experiência. Via-os na televisão e agora estou a correr com eles. Tinha medo, mas queria. Foi uma boa experiência”, declara.
A tentar “trabalhar nas férias” para se poupar durante a época, para treinar e fazer provas sem desgaste adicional, quer viver sozinha e, sem planos de voltar a Portugal mas cheia de vontade de “representar bem o país”, vai aos Mundiais com um objetivo claro.
“Ainda nem me dei conta que vou poder lá estar. Não fui a um Europeu sénior e conseguir ir aos Mundiais... nem pensei que era possível. Se eu consegui, toda a gente pode conseguir. O meu objetivo é dar o meu melhor e tentar bater o recorde nacional. Porque não tentar uma meia-final?”, adverte.
Tímida e concentrada em si mesma para poder melhorar, trabalhar mais, transformou as agruras da infância num caminho que, em 2023, a fez “valorizar mais o atletismo”, sendo acompanhada por um psicólogo que a ajuda, em conjunto com “a mentalidade africana, de ultrapassar as coisas”, e a importância de Deus.
É essa experiência de vida e o papel do atletismo como ‘tábua de salvação’ que agora diz querer alavancar para inspirar outras, como a inspiraram a ela, para chegar longe, até porque, repete várias vezes, se conseguiu “outros também podem”.
Lusa