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Como viver uma relação saudável após uma infância dolorosa

As vivências da infância perseguem-nos pela vida fora.
As vivências da infância perseguem-nos pela vida fora.  
Foto:Cookie_studio (Freepik)
Manter uma relação saudável após ter sofrido um conjunto de agressões físicas e/ ou psicológicas não é algo assim tão simples.

As vivências da infância perseguem-nos pela vida fora, na medida em que se trata de uma fase de muitas aprendizagens, descobertas e em que o ser humano se prepara para se conhecer e para partilhar a sua identidade com os demais. É o período em que se dá a formação da personalidade e, quando esta se baseia em violência, em humilhações, críticas constantes, entre outras formas de maus-tratos, o cérebro adquire um conjunto de características e modos de funcionamento muito específicos que condicionam a forma como a pessoa se vai relacionar com os outros no futuro.
 
Na realidade, “seria aceitável e normal” que, depois de adulta,  a vítima não quisesse repetir o ambiente que viveu na infância e que procurasse uma alternativa, contudo, é muito comum que faça precisamente o inverso, ou seja, que procure pessoas que igualmente a maltratam, já que esse é o cenário a que está habituada, o que alimenta a dor e o sofrimento, no entanto, os especialistas em comportamento humano alertam que, o facto de ter passado por um conjunto de vivências traumáticas, não traduz literalmente que tenha de as manter. «É possível trabalhar esses episódios negativos e destrutivos e tentar um estilo de vida alternativo, mas para isso, é preciso muito trabalho interior, ir ao fundo das emoções, compreender o que se passou e, acima de tudo, rejeitar essa continuidade», evidenciam os entendidos nesta matéria.
 
Alguns trabalhos de investigação levados a cabo sobre este assunto demonstram que, por norma, as mulheres arrastam o mesmo tipo de modelo de vítimas que viveram na infância aquando da idade adulta e procuram um parceiro que as maltrata, enquanto que os homens tendem a tornar-se agressores e a maltratarem a companheira, à semelhança do que vivenciaram na infância.
 
Para que se entenda em profundidade o que dá lugar a estes comportamentos na idade adulta, é preciso lembrar que, na infância todos somos frágeis, indefesos e estamos a construir a nossa estrutura mental, pelo que, mediante a qualidade do ambiente em que estamos inseridos, assim será o desenvolvimento das nossas habilidades e a forma como vivemos as nossas emoções ao longo do nosso percurso.
 
Uma criança que foi sempre maltratada física e/ou psicologicamente, não conhece o caminho do amor, da compreensão, da atenção, o colo, o aconchego, o diálogo, a negociação e demais formas de entendimento humano essenciais para que se viva uma relação saudável, pelo que, será sempre o modelo a que está habituada que a leva a iniciar uma relação atrás da outra com a mesma falta de qualidade.
 
É fundamental compreendermos este ponto antes de apontarmos o dedo à mulher que parece “condenada” a parceiros agressores e ao homem que, divórcio após divórcio, continua a agredir a parceira. O seu cérebro foi assim preparado e é dessa forma que entende as relações, pelo que, se não houver um corte com esse modelo, estas pessoas vão prosseguir este caminho de dor, seja a que provocam nos outros, seja a que sentem dentro de si mesmas.
 
De acordo com os cientistas, foi possível perceber, através de ressonância magnética que, o cérebro de uma pessoa que sofreu maus-tratos na infância, apresenta diferenças em nove regiões corticais, em comparação com quem  não passou por esse tipo de cenário. Na prática essas alterações cerebrais traduzem as seguintes consequências:
 
•Dificuldades em autorregular as emoções e comportamentos e em controlar os impulsos.
 
•Déficits sociopercetivos.
 
•Problemas em manter um equilíbrio saudável entre introversão e extroversão.
 
•Comprometimento das funções executivas;
 
•Aumento do risco de consumo de drogas ou sofrer de uma variedade de distúrbios psicológicos na idade adulta.
 
Ao mesmo tempo, os maus-tratos na infância levam a que ocorra uma alteração na resposta neurobiológica ao stress e problemas de convivência e relação com os demais.
 
Nesta sequência, os entendidos afirmam que, apesar de se conhecerem estas alterações, é possível trabalhar com estas pessoas e proporcionar-lhes uma boa qualidade de vida e uma relação saudável com os outros e, em especial, uma parceria amorosa. Para tal, é preciso pedir ajuda especializada, envolver a pessoa no seu próprio processo, mostrar-lhe que existe um caminho alternativo e muito mais positivo e proceder a uma intervenção psicológica que lhe permita ir ao fundo das suas experiências negativas, aceitá-las, assumi-las e transformá-las da forma mais adequada.
 
O profissional tem sempre em conta que a pessoa passou por um conjunto de vivências destrutivas, que cresceu com um tipo de apego evitativo, que se desenvolveu sem afeto, compreensão, amor e carinho, que passou por uma série de agressões físicas e psicológicas e que precisa também de construir a sua autoestima, uma vez que, a mesma foi abalada desde o ato do seu nascimento.
 
É um facto que se trata de um trabalho intenso, que pode demorar algum tempo, mas cujos resultados são muito positivos, sublinham os especialistas lembrando que, a principal dificuldade do paciente é assumir o que viveu, ser capaz de o condenar, de se perdoar e de dizer a si mesmo que não merece dar continuidade a esse modelo tão doloroso e prejudicial.
 
Depois de alterada a forma de pensar e de encarar a sua própria realidade, é natural que o indivíduo comece a despertar interesse por outro tipo de pessoas, de valores e influências, pelo que, é comum que encontre uma parceria amorosa muito mais adequada ao seu novo estar e sentir.
 
É também comum que, durante e após a intervenção, a pessoa sinta que já não se identifica com o seu passado e que queira seguir um caminho novo e diferente. É ainda natural que se afaste de quem lhe causou sofrimento, mesmo que sejam membros da família, e de todos aqueles que lhe apresentam o mesmo modelo destrutivo.
 
Na maioria dos casos, o parceiro ou parceira é envolvido na terapia e acaba por ser um forte alicerce na recuperação da pessoa e na construção de uma qualidade de vida saudável e feliz.
 
Para finalizar, importa sublinhar que, como na maioria das vezes, os maus-tratos são praticados pelos pais, e no local mais íntimo e que deveria ser o porto-seguro da criança, é natural que em adulta esta consiga relacionar-se de forma razoável com quem está ao seu redor, mas que apresente muitas dificuldades em ser alguém natural e realizado dentro de casa e com a pessoa que ama. A própria noção de família lhe causa algum mal-estar, uma vez que, é mesmo aí que reside o trauma. É por esse motivo que, o terapeuta faz um trabalho conjunto, muitas vezes também com os filhos, se existirem, pois só assim se pode garantir que a relação familiar vai conhecer novos contornos.
 
Fátima Fernandes